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“Firmados nas veredas antigas”
2 de março de 2017
“O Conceito de Aliança”

Rev. Sebastião Machado Arruda

O conceito de aliança ocupa um lugar de grande relevância,  permeando todo o ensinamento da Palavra de Deus, e muito dificilmente a Igreja lhe dará maior importância  do que aquela que na verdade ele merece. A compreensão correta do seu significado, abrangência  e praticidade produz uma tremenda influência na vida do homem, tanto no seu relacionamento com Deus como no relacionamento com a família  e com o cosmos. Assim, apenas para dar uma rápida idéia do seu valor, mencionamos algumas passagens bíblicas em que ele ocorre com  várias e significativas aplicações: Êxodo 24:7; 24:8; Levítico 2:13; Números 10:33; 25:12; Deuteronômio 9:15; 2 Crônicas 34:32; Isaías  54:10; Jeremias 33:20; 33:21; 33:25; Amós 1:9; Malaquias 2:10 e 3:1.

 

1.1. Gênesis 6:18 – A Primeira Ocorrência da Palavra “Aliança” (berît) “Contigo, porém, estabelecerei a minha aliança; entrarás na arca, tu e teus filhos, e tua mulher, e as mulheres de teus filhos.”

 

Algumas perguntas devem ser respondidas nesta passagem e no seu contexto, como por exemplo: 1º. Qual o significado da palavra aliança (berît)? 2º. Quais as implicações do uso de justo (tsaddîq) em Gênesis 6:9? 3º. Qual o significado do uso da forma causativa hebraica haqimôtî traduzida por estabelecerei? 4º. Quais as implicações do uso da primeira pessoa do singular no verbo Eu estabelecerei (haqimôt)î  e do possessivo  minha ligado diretamente ao termo berîti (minha aliança) como sufixo?

 

1.1.1. O Significado de berîti (minha aliança) – Há pelo menos três principais conceitos quanto à etimologia dessa palavra, mas nenhum deles é conclusivo, segundo Harris, Archer e Waltke.  Uma opinião é que a palavra vem de (brh), significando  “comer” ou “jantar” (2 Sm. 3:25; 12:17; 13:5, 6, 10; Sl.  69:21; Lm. 4:10). Isto se referiria à comida que normalmente acompanharia a cerimônia da aliança. Um segundo ponto de vista sugere que seja derivado do acádio (burro) que significa o estabelecimento de uma situação legal através de testemunho com um juramento. Uma terceira possibilidade seria a de unir berîti com o termo acádio (birtu) passando a significar “apertar”, “acorrentar”. Isto teria o apoio do termo hitita acadiano para tratado (vihsu) e (ishiul) que significa  “laço”. Isto também teria seu apoio em Ez. 20:34, “tirar-vos-ei dentre os povos e vos congregarei das terras nas quais andais espalhados, com mão forte, com braço estendido e derramado furor”[1]  Dumbrell entende que este terceiro sentido é o mais provável, porque quando berît é usado no Antigo Testamento, em um contexto em que relacionamentos são estabelecidos ou confirmados, geralmente traz consigo uma idéia de vínculo.[2] E ainda, segundo o mesmo autor, embora  a terminologia não seja constante, embora os elementos constituintes sejam diferentes, e embora igualmente o estado e natureza das festas para a conclusão não sejam uniformes, o fato comum a todos os casos é que a aliança refere-se  e envolve um compromisso solene final pelo qual um estado de relações existentes é normatizado.[3]

 

Assim, parece-nos que a exata compreensão do termo não vem da etimologia, mas do seu uso nas Escrituras. Em Gênesis 6: 18, o  encontramos, pela primeira vez na Bíblia.  No Velho Testamento,  ele ocorre por volta de duzentas e noventa vezes, e na maioria das versões em português, é comumente traduzido por  aliança`. Em seu uso bíblico, berît   pode significar um acordo social,  político ou econômico que tenha sido concluído sob condições estabelecidas entre as partes.  John Walton lembra que o termo é usado para referir-se a um tratado internacional (Js. 9:6; I Reis 15:19), alianças de clã (Gn. 14:13), acordos pessoais (Gn. 31;44), contratos legais (Jr. 34:8-10), acordos de lealdade (I Sm. 20:14-17), e acordos de matrimônio (Ml. 2:14).[4] Mais especificamente, em Gênesis 6:18, ele  é empregado em uma declaração que Deus fez a Noé, inserida no contexto da criação.  Deus criou o mundo de forma perfeita e muito boa. Criou também o homem à Sua imagem e semelhança, designando-o  vice-gerente para dominar e cuidar de tudo na terra (Gn. 1:28; 2:15). Contudo, com a queda, o mal se desenvolveu a tal ponto que Deus resolveu destruir todos os seres viventes. Assim, em termos precisos, são apresentadas, no capítulo 6,  as razões que ocasionaram essa terrível maldição.  Noé, contudo,  foi escolhido, juntamente com os de sua casa, para estabelecer um novo começo. Nessa apresentação de razões, pode ser visto de forma clara um forte contraste entre Noé e seus contemporâneos. Depreende-se do texto que Noé agradava a Deus, enquanto que os seus contemporâneos, devido a um comportamento ofensivo ao Criador, não podiam mais ser suportados:

 

Noé  é apresentado em forte contraste com a sua geração em Gênesis 6:5-9. Sobre Noé é dito que “era homem justo e íntegro entre os seus contemporâneos” e que “andava com Deus” (v. 9), ao passo que sobre o gênero humano em geral é dito que “viu o SENHOR que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração” (v. 5).  Sobre Noé é dito que “achou graça diante do SENHOR.” (v. 8), ao passo que sobre o gênero humano em geral é dito que “então, se arrependeu o SENHOR de ter feito o homem na terra, e isso lhe pesou no coração” e que “disse o SENHOR: Farei desaparecer da face da terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis e as aves dos céus; porque me arrependo de os haver feito” (vv. 6-7).

 

1.1.2. O Significado de tsaddîq (justo) nesse Contexto – Embora Noé tenha sido  objeto do favor divino, parece-nos que isso tinha também ligações com o  seu comportamento: “Noé era homem justo e íntegro entre os seus contemporâneos; Noé andava com Deus”.  O termo justo  (Heb. tsaddîq ) no Antigo Testamento refere-se basicamente a uma conduta em um relacionamento, tendo em vista o preestabelecimento dos padrões que deviam ser observados. Só secundariamente esse termo pode ser aplicado no sentido forense de “declarar justo”. Isso indica que havia um padrão de vida estabelecido pelo Criador que estava sendo quebrado por toda a raça humana, mas que era observado com fidelidade por Noé. Nesse sentido, poderíamos dizer que os termos “justo”, “íntegro”   e “andava com Deus” são enfáticos quanto à fidelidade de Noé a esse padrão preestabelecido. Assim, embora a palavra aliança (berît) só apareça pela primeira vez em 6:18, o seu contexto aponta para trás dando claras indicações de que já havia um  pacto estabelecido anteriormente. Noé vivia como uma pessoa do pacto: ele tinha uma família: uma esposa, três filhos, e noras. E isso, acrescentado ao testemunho que é registrado sobre sua pessoa e ao fato de que a sociedade em que vivia estava em completo caos moral e espiritual, é bastante significativo.

 

1.1.3. O Significado do Uso da Forma Causativa Hebraica haqimôtî[6] (Eu estabelecerei) – Parece-nos que este é o principal elemento de definição  para   concluir se  o pacto anunciado  em Gn. 6:18 estava sendo estabelecido ou confirmado. Há, no Antigo Testamento, inúmeros exemplos do uso do causativo. Ele pode ser empregado  para indicar:

  • Exigências da Aliança que foram aceitas (Dt. 27:26, 2 Reis. 23:3),
  • Ordens que foram mantidas (1 Sm. 15:11; 2 Reis. 23:24),
  • Fidelidade de Deus à Sua palavra dada (Neem. 9:8),

 

A forma causativa do verbo é também comum  e freqüente no sentido de “levar a cabo”, e assim, dependendo do contexto, “estabelecer” (Dt. 9:5; cf. semelhantemente 1 Sm. 1:23; Is. 44:26; Jr. 28:6). Alguns exemplos do seu uso são:

 

  • Em 2 Sm.7:25 – Davi ora para que Deus “confirme” as promessas anteriores do capítulo (semelhantemente, 1 Reis. 2:4; 6:12; 8:20)

 

  • Em 1 Reis. 12:15 – a palavra divina dada a Aías, o silonita, anunciando a divisão do reino depois da morte de Salomão, é “cumprida”.
  • Em Jr. 1l:5; 23:20; 29:10; 30:24; 33:14 – o verbo expressa uma intenção divina de levar a cabo ou se refere à execução divina do que foi prometido previamente.

 

  • Em Gn. 26:3 – Deus aparece a Isaque com uma repetição das promessas dadas a Abraão para “cumprir o juramento” feito ao seu pai.

 

  • Em Nm. 30:14 – um marido “confirma” o voto da esposa quando recusa-se a anulá-lo.

 

Portanto, uma boa tradução da sentença “Contigo, porém, estabelecerei a minha aliança seria “Contigo, porém, ratificarei a minha aliança”,  ou  “Contigo, porém, confirmarei a minha aliança”.

 

1.1.4. O Significado do Uso da Primeira Pessoa do Singular em haqimôtî (Eu confirmarei), e de  “minha”, ligado a berîti (minha aliança) como sufixo –  De início, salta aos olhos de qualquer observador  que o sujeito é aquele que confirmará a aliança anunciada, e que aquele a quem a aliança será confirmada é passivo. Nem de longe é possível extrair dessa passagem o conceito de uma aliança bilateral. Não temos aqui a expressão “confirmaremos”  ou “nossa aliança”.  Como esclarece o contexto, Deus, e somente Ele,  é o sujeito dessa ação; e Noé, é aquele a quem a ação se destina. Neste relacionamento, o Criador estabelece as condições e o homem responde com obediência e fidelidade. Como diz Wenham “Deve ser notado que “Eu confirmarei minha aliança contigo” mostra que Noé já é visto como em uma relação de aliança preexistente com Deus. Ele não é simplesmente um homem perfeitamente justo; há uma aliança entre ele e Deus”[7]  Assim, Eichrodt[8], cuja obra Old Testament Theology se baseia grandemente no conceito de aliança, está errado quando parte de um conceito secular de aliança para concluir que berît  deve ser sempre visto como um relacionamento bilateral.[9]

 

Em Gênesis 6:18, portanto,  não temos uma linguagem característica da iniciação de uma aliança; pelo contrário, temos o anúncio de que Deus honrará uma aliança já existente. No contexto anterior, Yahweh tinha anunciado o dilúvio  como juízo sobre a terra, mas Ele assegura a Noé que Ele honraria a aliança, não só com Noé, mas com toda a criação.  Contudo, não encontramos nesta passagem uma referência direta e clara ao tempo em que essa aliança fora dada ou à sua abrangência. Esses aspectos são esclarecidos em Gênesis 9:1-17, que passamos a considerar.

 

1.2. Gênesis 9: 1-17 – A Ligação Com o Pacto da Criação.

Depois de ter anunciado a Noé que o juízo viria sobre toda a terra, mas que a aliança seria mantida e que o reino cósmico seria preservado, Yahweh repetiu os mandatos pactuais a Noé e seus filhos. Eles foram abençoados por Yahweh e receberam a ordem para levar adiante o mandato social:  “sede fecundos”, macho e fêmea se tornaram uma carne: – o mandato  social (9:2,7). Além disso, leis foram dadas para a preservação da vida  ( 9:1-7), e um sinal de garantia da graça de Deus na preservação da criação foi colocado no céu.

 

Com a consumação do dilúvio, temos em Gênesis 9 um novo começo. São claros os paralelos que podem ser traçados  a esse respeito. Isso mostra que a aliança anunciada em Gn. 6:18 não era apenas com Noé pessoalmente, mas com Noé representativamente. Além disso,  Gn. 8:21-22 mostram que o cuidado de Deus seria estendido novamente a todos os homens.

Primeiro Começo Segundo Começo
E Deus os abençoou e lhes disse:    (Gn. 1:28) Abençoou Deus a Noé e a seus filhos, e disse-lhes: (Gn. 9:1)
 Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra. (Gn. 1:28)  Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra. (Gn. 9:1)
…e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal que rasteja pela terra. (Gn. 1:28). Pavor e medo de vós virão sobre todos os animais da terra e sobre todas as aves dos céus; tudo o que se move sobre a terra e todos os peixes do mar nas vossas mãos serão entregues.   (Gn. 9:2)
Também disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança;  (Gn. 1:26). Se alguém derramar o sangue do homem, pelo homem se derramará o seu; porque Deus fez o homem segundo a sua imagem. (Gn. 9:6).
Contigo, porém, estabelecerei a minha aliança; entrarás na arca, tu e teus filhos, e tua mulher, e as mulheres de teus filhos. (Gn. 6:18)  Disse também Deus a Noé e a seus filhos: Eis que estabeleço a minha aliança convosco, e com a vossa descendência, e com todos os seres viventes que estão convosco: tanto as aves, os animais domésticos e os animais selváticos que saíram da arca como todos os animais da terra.  Estabeleço a minha aliança convosco: não será mais destruída toda carne por águas de dilúvio, nem mais haverá dilúvio para destruir a terra.  Disse Deus: Este é o sinal da minha aliança que faço entre mim e vós e entre todos os seres viventes que estão convosco, para perpétuas gerações: porei nas nuvens o meu arco; será por sinal da aliança entre mim e a terra.  Sucederá que, quando eu trouxer nuvens sobre a terra, e nelas aparecer o arco, então, me lembrarei da minha aliança, firmada entre mim e vós e todos os seres viventes de toda carne; e as águas não mais se tornarão em dilúvio para destruir toda carne.  O arco estará nas nuvens; vê-lo-ei e me lembrarei da aliança eterna entre Deus e todos os seres viventes de toda carne que há sobre a terra. Disse Deus a Noé: Este é o sinal da aliança estabelecida entre mim e toda carne sobre a terra.  (Gn 9:8-17)

 

O que temos, portanto, em Gn. 9 1-17 é a aliança  dada por ocasião da criação, anunciada em 6:18; e , agora, ratificada e ampliada. O homem é ainda a imagem de Deus e continua com o mandato de dominar sobre a terra, mas isso deve ser feito nas novas circunstâncias ocasionadas pela queda. Não existe mais o relacionamento harmonioso visto nos capítulos 1 e 2. Os animais passaram a viver com medo do homem e toda a criação passa então a gemer por causa do pecado. Deus coloca no céu um sinal da Sua aliança dada a todos os seres viventes, a toda a terra, um arco (Gn. 9:12,13). Essa é a sua garantia da perpetuação  da criação.

 

Concluímos, assim, que se Gênesis 6 anuncia a confirmação de uma aliança que fora dada no passado, embora não faça menção do “quando”; Gênesis 9 responde a essa questão e nos remete para esse “quando”, estabelecendo uma perfeita ligação desse novo começo com Gênesis 1-3. Logo, o que nos resta fazer,  para uma compreensão ampla do conceito de aliança, é estudar o relato da criação.

 

1.3. – Uma Volta ao Princípio – A Aliança da Criação

Gênesis 9 registra um novo começo confirmando o mandato dado ao homem para dominar a terra, mas os elementos da aliança propriamente ditos devem ser encontrados no relato completo da criação (Gn. 1-3).  Assim, podemos começar notando que Gênesis 9 mostra o homem ainda na mesma terra  e com o mesmo relacionamento que mantinha antes da queda, de onde se conclui que o propósito divino não está restrito ao homem. Se a queda do homem representou também a queda da criação, a redenção da raça humana necessariamente deverá representar a redenção da criação. A aliança não foi dada somente ao homem, mas também  ao dia, à noite (Jr. 33:25), a todos os seres viventes (Gn. 9:12) e, por fim, a toda a terra (Gn. 9:13); daí esta terminologia: “Aliança da Criação”.   Além disso, podemos dizer que existe apenas uma aliança  e que todos os conceitos correlatos que progressivamente ocorrem no Antigo Testamento têm como base primária Gênesis 1. A mesma conexão existente entre Noé e a Aliança da Criação também pode ser encontrada entre a Aliança da Criação e a da Redenção[10],  a Aliança da Redenção e Noé, Noé e Abraão, Abraão e o Sinai, o Sinai e Davi, Davi e Jeremias, Jeremias e a  Nova Aliança. Tudo isso é parte de uma única aliança que foi revelada progressivamente, como demonstra o Dr. Van Groningen no gráfico seguinte: Assim, estamos convencidos de que essa aliança foi dada de forma embrionária na criação. Por isso achamos adequado o termo “Aliança da Criação”[11] que, conforme observa o Dr. Van Groningen, é o meio pelo qual a vontade de Deus para a humanidade é conhecida e deve ser executada. É também o meio  para a tarefa educacional e política da humanidade, tarefa essa inerente à Aliança da Criação, mas decifrada à medida que a Aliança da Redenção é revelada e progressivamente desdobrada.[12]

As críticas a este ponto têm sido feitas na base do seguinte raciocínio: Em Gênesis 1-3 não ocorre, nenhuma só vez, a palavra berît (aliança). Contudo, teólogos como Eichrodt,  McCarthy e Mendenhall  não restringem a existência da aliança às passagens em que  ocorre o termo berît[13]. Eichrodt, respondendo a esses críticos da Teologia da Aliança do Antigo Testamento, observou: “O ponto crucial não é – como o criticismo como um todo às vezes parece pensar – a ocorrência ou ausência da palavra hebraica berît”. O termo é somente “uma palavra código” para algo que vai além do alcance da própria palavra.[14] Assim, embora não ocorra a palavra técnica para aliança, todos os elementos necessários estão ali presentes. Aliás, pode se dizer que a idéia de aliança está presente em todas as páginas das Escrituras.

1.4. Aliança e Reino

Até este ponto temos procurado demonstrar  a origem e o valor da aliança e, na verdade, falamos muito pouco da sua aplicação e propósito. Isso, por sua vez, nos remete ao importantíssimo conceito de reino. Esses dois assuntos de grande relevância, aliança e reino, permeiam todo o ensinamento tanto do Antigo quanto do Novo Testamento. Robertson lembra que desde a criação até a consumação o vínculo pactual  determina a relação de Deus com o Seu povo[15]. Assim, podemos chamar a Bíblia, com bastante propriedade,  de o registro escrito das leis pactuais que regem o reino.

 

1.4.1. A Idéia de Aliança e Reino Segundo as Escrituras (linhas gerais) – Destacaremos aqui, mais especificamente, o relacionamento do homem  no reino, dando ênfase aos três mandatos que abrangem toda a vida e relacionamento humano: a) relacionamento com Deus – Mandato Espiritual; b) relacionamento com a família – marido, esposa e filhos – Mandato Social; e c) relacionamento com o cosmos – agricultura, ciência, tecnologia, política, ecologia, etc. – Mandato Cultural que, como diz Hoekema, é “o mandamento para desenvolver uma cultura que glorifique a Deus”.[16] Isso pode ser visto no gráfico  apresentado pelo Dr. Van Groningen (figura número 2)

 

1.4.1.1. O Mandato Espiritual – O registro da criação mostra que tudo foi feito segundo um plano.  Isso pode ser visto na ordem em que as coisas foram criadas. Cada ato da criação revela o propósito do Criador para as obras de Suas mãos. Como já vimos, somente para o homem ocorre uma fórmula plural de resolução, “façamos”, e somente para o homem é usada a expressão “imagem de Deus”. Pode ser visto, no uso da primeira pessoa, que Deus é um ser pessoal. E o homem, também um ser pessoal criado à imagem de Deus, possui uma característica singular entre toda a criação. Como diz o Dr. Van Groningen: “ser uma pessoa é ser como Deus e conhecer o bem. É ter uma consciência, um sentido de privilégio e responsabilidade”[17]. Pode ser visto  ainda que como Deus é espiritual, o homem é espiritual e pode manter esse relacionamento com o seu Criador, pois “Deus é espírito; e importa que os seus adoradores o adorem em espírito e em verdade” (Jo. 4:24).  Além disso, a criação do homem  vem acompanhada das condições adequadas, preparadas por Deus,  para ele viver e servir, como vemos em Gn. 2:8-10,15.

 

Nestes versículos podemos ver claramente o amor e a bondade de Deus. O homem tinha um lugar aprazível para viver, alimentação abundante, água com fartura e um trabalho para fazer. Ele podia comer de todas as árvores do jardim, mas lhe fora requerido que da árvore do conhecimento do bem e do mal não comesse, pois no dia em que dela comesse certamente morreria (2:9, 16,17). Ou seja, a desobediência quebraria o vínculo de amor entre ele e Deus. Adão tinha habilidade para responder com obediência e fidelidade aos termos do Criador. Nada no texto indica que o homem seria promovido pela sua obediência, pois ele, como se vê no contexto,  fora feito “muito bom”,  “à imagem e semelhança de Deus”, com  “um lugar de delícias para morar”,  “um reino para governar”, “uma companheira idônea para o completar” e “um íntimo e perfeito relacionamento com o Criador”. Esse era o status  do homem quando foi criado. Levando em conta esses aspectos, o Dr. Van Groningen  relaciona-os com a motivação de Deus ao criar o homem:

 

Deus, movido por bondade e amor, foi também motivado  a entrar  em relacionamento com outros seres além da Divindade. Deus queria comunhão – um relacionamento íntimo, bom e amoroso. Isto tornou-se possível particularmente com a criação do homem e da mulher à Sua imagem e semelhança. Este desejo de relacionamento é refletido quando as Escrituras falam de Deus andando no jardim, relacionando-Se com o Adão e Eva (Gn. 3:8-9)[18].

 

Assim, Deus, pela Sua bondade e amor, estabeleceu  um relacionamento singular entre Si próprio e os seres humanos quando Ele os criou à Sua imagem e semelhança, o que tornou possível esse relacionamento. O homem tinha, no jardim,  uma vida de intimidade, harmonia, comunhão, relacionamento e adoração com o Criador (Gn. 3:8).  O mesmo pode ser dito com  referência à passagem de Levítico  26:11-12, onde Moisés registra a promessa de Yahweh de estar continuamente com o Seu povo, no tabernáculo. Essa ligação do jardim com o tabernáculo indica que a presença de Deus assistia em ambos os lugares. O fato é que Deus está sempre presente com Seu povo em um íntimo exercício do vínculo de amor e vida com Seus vice-gerentes: No jardim, no tabernáculo, no deserto e onde estiverem dois ou três reunidos em Seu nome (Mt. 18:20).  Outro fator que indica a motivação divina na criação do homem à Sua imagem e semelhança é o estabelecimento do sétimo dia como dia de descanso. O homem podia ocupar-se de todos os seus afazeres nos seis dias da semana, mas o sétimo foi reservado para o relacionamento íntimo e amoroso com o Criador. Isso mostra que Deus criou o homem com esse propósito.

 

1.4.1.2. O Mandato Social – O relacionamento social do homem começa a partir da sua criação, quando o Criador, vendo  que não era bom que o homem estivesse só, faz-lhe uma companheira tirada da sua própria carne e institui a família. Com a instituição da família, Deus dá mandamentos que, quando obedecidos, trazem o bem-estar e a prosperidade tanto dos pais quanto dos filhos; e,  quando desobedecidos,  trazem as maldições decorrentes dessa desobediência. Assim, como observa o Dr. Van Groningen, o mandato para o relacionamento humano amoroso tem o seu significado específico no matrimônio entre o homem e a mulher e na relação destes com os filhos,[19] como lemos em Gn.1:27,28; 2:18,21,23 e24.

Depois da queda, o propósito de Deus quanto ao relacionamento familiar do homem não sofreu alteração. As pessoas do mundo tinham abandonado a Deus. Deus mandou que Noé construísse uma arca. Quando a arca foi construída, Noé foi instruído a levar toda a sua família para a arca. A graça de Deus fluiria à família e pela família de forma que eles pudessem repovoar a terra.

 

Depois da distinção dada à família de Noé, outra família recebe destaque na narrativa de Gênesis: Abraão e Sara. É importante notar que Abraão era da linhagem  de Sem (Gen. 11:10,26).  Deus prometeu  salvá-los e  usá-los para  abençoar  toda a terra por meio de sua descendência. Deus disse a Abraão que seria seu Deus (Gn. 17:7),  e muito mais que isso,  Ele seria também o Deus dos filhos de Abraão e Sara (Gen. 17:7).

 

A primeira exigência de Deus foi que Abraão observasse a circuncisão  como  sinal da aliança. Todos os filhos dos sexo masculino deveriam receber, ao oitavo dia, o sinal da circuncisão.  Isso era para lembrar aos pais e aos filhos que eles pertenciam ao Senhor. Qualquer um que não recebesse o sinal da circuncisão deveria ser cortado do povo como quebrador da aliança. É o que lemos em Gênesis 17:9-14.

 

A segunda exigência da aliança foi para que Abraão ensinasse os princípios da mesma aos seus descendentes. Isso era um fator contingencial para que Deus concedesse a Abraão o que lhe tinha prometido. É o que lemos em Gênesis 18:19.

 

Com essa prerrogativa da aliança, Deus assegurava a continuidade do relacionamento com o  Seu povo. O dever da instrução dos filhos é, portanto, de fundamental importância dentro da idéia de aliança. Isso é apresentado com muita ênfase por Moisés em Dt. 6:6-7: “Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração; tu as inculcarás a teus filhos, e delas falarás assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te.”

 

1.4.1.3. O Mandato Cultural – Também esse mandato pode ser visto  na Obra da Criação, em Gênesis 1:26-29.

 

Na narrativa da obra da criação  vamos encontrar o conceito do Criador sobre o seu trabalho e o propósito definido para cada uma das obras de Suas mãos. No primeiro capítulo de Gênesis não somente estão  registrados os sete dias da criação, mas também sete referências à criação como boa (qui-tôv), a sétima como muito boa (tôv meôd)  vv. 4, 10, 12, 18, 21, 25 e 31). Ou seja: Todos os aspectos criados estão de acordo com o padrão da vontade de Deus. Essa verdade é repetida pelo apóstolo Paulo, em sua primeira carta a Timóteo:  “pois tudo que Deus criou é bom” (1 Tm. 4:4).  A mesma   perfeição e harmonia pode ser vista também na separação de cada coisa para um propósito definido: O firmamento, separando águas e águas (1:6-7); o ajuntamento das águas em um só lugar, proporcionando o conseqüente aparecimento da terra seca (1:9); e os luzeiros, fazendo separação entre dia e noite (1:14, 18). Além disso, plantas e árvores frutíferas, peixes e pássaros, animais e répteis são diferenciados, cada um  de acordo com sua espécie (1: 11, 21, 24, 25). Assim, o firmamento separa as águas (1:6,7); o luzeiro maior governa o dia e o menor governa a noite (1:16); a terra cumpre o seu papel, produzindo relva, ervas que dão semente e árvores que produzem frutos (1:11); a terra e a água produzem seres viventes  (1:20, 24). O homem, os peixes e os pássaros receberam o mandato de multiplicarem-se; os peixes para encher o mar, as aves  para encher o ar e o homem para encher a terra (1:22, 28).

 

Nesse contexto, portanto, o homem é contemplado com um destaque, na mais longa seção e no último ato da criação antes do dia de descanso (Gênesis 1:26-30). Isso o coloca acima de toda a criação e proclama a singularidade do homem. Só para o homem é empregada  uma fórmula plural de resolução, “façamos”, e só para o homem é usada a frase “imagem de Deus”. Esse destaque pode ser visto também na passagem profética referente a Jesus Cristo, mas que em sentido secundário pode ser aplicada  à humanidade de forma geral, encontrada no Salmo 8:5-8: “Fizeste-o, no entanto, por um pouco, menor do que Deus e de glória e de honra o coroaste. –  Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste: ovelhas e bois, todos, e também os animais do campo; as aves do céu, e os peixes do mar, e tudo o que percorre as sendas dos mares”.

 

Isso indica que o raio de ação do homem é muito amplo e que ele terá a responsabilidade de prestar contas ao Criador. O Dr. Van Groningen sintetiza isso dizendo  que o homem  “deve ter domínio sobre o cosmos, descobrindo, cultivando, desenvolvendo, preservando e trazendo a plena atividade a grande variedade de elementos e potencialidades no cosmos”.[20]  Ou, como diz Hoekema: “nós temos aqui o que é freqüentemente chamado de mandato cultural: o mandamento para desenvolver uma cultura que glorifique a Deus”[21].  Portanto, o fato de alguém procurar o desenvolvimento pessoal, intelectual e tecnológico  para servir melhor no reino é plenamente justificado por esse ensino.

Uma convincente  e esclarecedora base metodológica quanto ao conceito de aliança e reino é apresentada pelo Dr. Van Groningen, em sua obra Messianic Revelation in the Old Testament. Assim, sumariamos abaixo a abordagem do assunto que ele apresenta,  subdividindo-o em cinco pontos principais:

1º.  O conceito bíblico de reino envolvendo a idéia de um rei, Deus;  de domínio, toda a criação; de trono, o exercício da graça, poder e ira do rei; de vice-gerência,  o homem criado à imagem de Deus e designado para servir sob e com o Criador.

2º. O cerne da relação pactual, o vínculo de vida e amor estabelecido no tempo da criação da humanidade, mantido e implementado por Deus, também chamado de aliança da criação.

3º. A aliança da redenção, revelada em forma embrionária no tempo da queda e depois dela, de forma progressiva, sendo exercida e aplicada através dos tempos.

4º. A colocação do vice-gerente sob um mandato dividido em duas partes:

  1. a) O mandato da aliança da criação, que é subdividido em três partes:

(1) o exercício do vínculo de vida e amor entre o rei e seu vice-gerente, chamado de mandato espiritual;

(2) mandato da comunhão humana entre a família: marido, esposa e filhos, chamado de mandato social;

(3) o mandato que expressa a relação da humanidade com o cosmos, chamado de mandato cultural. Sendo, portanto, a aliança da criação o meio pelo qual a vontade de Deus é conhecida e o modo como deve ser executada.

  1. b) O mandato redentivo, subdividido em quatro partes:

(1) submissão à graça de Deus revelada em Cristo;

(2) vida de santificação e reflexão diária na vontade de Deus expressa no tempo da criação e progressivamente revelada;

(3) o dever da humanidade redimida de ser uma bênção para o mundo;

(4) o dever da humanidade redimida de mostrar  misericórdia e compaixão à viúva, ao órfão, ao aflito, ao oprimido, ao pobre, ao estrangeiro e ao refugiado;

5º. a garantia das bênçãos decorrentes da obediência e das maldições decorrentes da desobediência.[22]

1.4.2. Aliança em Israel e no Antigo Oriente Próximo – Uma Breve Comparação – A comparação desse modelo apresentado acima, fundamentado na Palavra de Deus, com o modelo de aliança  encontrado no Antigo Oriente Próximo, sumariado abaixo, pode ser de grande ajuda para uma compreensão mais ampla da matéria. Nesse sentido, é de grande utilidade a obra de  Mendenhal, Law and Covenant in Israel and the Ancient Near East, onde ele  destaca os elementos comuns encontrados  nos tratados de Suserania,  fazendo a ligação desses elementos com os da aliança, apresentados nas Escrituras:

  1. Preâmbulo: Uma aliança começa sempre com uma fórmula: “assim diz o grande rei, ou o valoroso”. Isso identifica o autor da aliança com o seu título e atributos, tanto quanto sua genealogia. A ênfase é colocada na majestade e poder do rei que confere um relacionamento por meio de uma aliança com o seu vassalo.
  2. O prólogo histórico: Uma exposição detalhada da relação existente entre os dois, que os vassalos deviam ouvir, manifestar verbalmente sua aceitação e viver e servir de acordo com o estabelecido.
  3. As estipulações: A escrita detalhada das obrigações impostas sobre o vassalo e por ele aceitas. Essa escrita não podia ser alterada ou rescrita. Parte dessas estipulações era provisão para a continuidade da aliança e incluía a vontade expressa do grande rei  concernente à descendência dos vassalos e sua instrução e preparação para o serviço.
  4. Provisão para se guardar o tratado no templo para leitura pública periódica: Essa leitura servia a um duplo propósito: (1) familiarizar toda a população com as obrigações para com o grande rei; (2) desenvolver nos vassalos o respeito devido ao grande rei.
  5. Uma lista de testemunhas que atestavam o tratado.
  6. A fórmula de bênçãos e maldições: Um dos mais interessantes aspectos da aliança. As bênçãos eram para os que respondessem afirmativamente em palavras, vida e serviço. As maldições eram expressões das terríveis conseqüências que viriam sobre os que fossem infiéis e desobedientes. [23]

1.4.3. A Bíblia – O Livro da Aliança do Reino – A Bíblia é o registro escrito  da revelação que normatiza, no reino, as relações pactuais. Como já foi dito, o conceito de reino tem três elementos inseparáveis: O Rei, Deus; o domínio, toda a criação; e o trono, o exercício de Seu poder. Porém, há ainda um elemento central que não pode ser esquecido: O vínculo de vida e amor que dá ao reino o seu caráter singular. A Bíblia apresenta essa relação pactual  como um vínculo de vida e amor que só pode operar  plenamente no contexto do reino. Na verdade, a Bíblia fala de si mesma em termo de aliança: A velha aliança e a nova[24]  aliança. A velha aliança informa-nos a respeito do soberano, seu domínio, seu reino, seus vice-gerentes, seus preceitos, suas provisões, suas bênçãos e as maldições para os infiéis.  A nova aliança  não repete as colocações da antiga, mas documenta o desenrolar contínuo da revelação de Deus. Ela fala especialmente do grande Mediador, Jesus.

Os principais gêneros literários do Velho Testamento são: Lei, História, Profecia, Louvor  e Sabedoria. Meredith Kline, em seu artigo “Canon and Covenant”,   vê uma ligação tão forte deles com a idéia de aliança ao ponto de atribuir-lhes o mesmo título: aliança.[25] Isso indica que  poderíamos ver assim a nomenclatura dos gêneros literários do Velho Testamento: Leis da Aliança, História da Aliança, Profecia da Aliança, Louvor da Aliança, e Sabedoria da Aliança.

1.5. A Dificuldade Com a Terminologia “Pacto das Obras”

Parece-nos que nos últimos cinqüenta anos a doutrina da Aliança foi mais estudada e desenvolvida do que qualquer outro ramo da Teologia. Esse avanço tem provocado fortes mudanças no velho dispensacionalismo e uma tomada de posição em vários segmentos do presbiterianismo mundial. Livros como o de Robertson, “O Cristo dos Pactos”; o de Dumbrell, “Covenant & Creation”; o do Dr. Van Groningen, “Revelação Messiânica no Velho Testamento”; e os vários artigos sobre o assunto, apresentados nas revistas teológicas, como os de Meredith Kline, no Westminster Theological  Journal,   e tantos outros, têm provocado uma mudança tão grande em alguns ramos que, por exemplo, por vezes torna-se difícil diferenciar alguns dispensacionalistas contemporâneos dos teólogos da aliança. Essa influência benéfica tem sido vista também em uma ênfase na Igreja na visão de reino, melhorando a abordagem educacional tanto para as crianças quanto para os adultos.

Além disso, esse avanço vem conduzindo a Teologia Reformada a uma apreciação mais acurada e exegética de sua terminologia. Isso, é evidente, não é feito em detrimento do  conjunto doutrinário, mas em seu benefício, com o propósito de adequar melhor essa nomenclatura  ao conjunto de ensinamentos bíblicos.

Na análise feita por Dumbrell, sobre o emprego dessa nomenclatura tradicional nas obras de Hodge, Systematic Theology;  e de Hoeksema, Reformed Dogmatics,  ele atribui a fraqueza de ambas à base inadequada do próprio conceito de Aliança, oriunda não de sólida exegese, mas da inferência bíblica geral.[26]

Assim, o Pacto das Obras é apresentado como um pacto pré-redentivo, por um lado  anulado e substituído pelo  redentivo Pacto da Graça; e por outro, ainda em vigor, por causa da obediência devida a Deus. Kline, contudo, observa que a diferença entre o pacto pré-redentivo  e o redentivo  não é que o último substitua a lei pela promessa. A diferença é que o pacto redentivo acrescenta promessa à lei.[27]

Segundo Kline, a fraqueza  da designação tradicional,   “Pacto das Obras” para o pacto pré-redentivo  consiste em não levar em conta  a continuidade do princípio da lei na revelação redentiva, não sendo, portanto,  um termo suficientemente  distintivo. O princípio das “obras” continua na administração do pacto redentivo, não somente no sentido de que as bênçãos da redenção são asseguradas pelas obras de um cabeça federal que satisfaz as exigências da lei, mas também no sentido de que nenhum dos que são  representados em Cristo alcança a consumação  da beatitude da aliança exceto se atingir aquela santidade sem a qual o homem não vê a Deus.[28]

Enfim, transcrevemos aqui, as próprias palavras de Meredith Kline quanto às suas razões para rejeitar a terminologia tradicional de “Pacto das Obras”.

0 desejo de mudar o termo tradicional, “Pacto das Obras”, baseia-se no seu caráter pouco distintivo. A outra designação tradicional, “Pacto da Graça”, também é um pouco deficiente no mesmo respeito, mas não tão seriamente. Graça, no sentido específico que efetua a restauração para o perdido  abençoado por Deus, naturalmente só é encontrada na revelação redentiva. Mas em outro sentido, a graça está presente na aliança pre-redentiva. Pois a oferta de uma consumação da bem-aventurança original do homem, ou antes, de toda a glória e honra com que Deus coroou o homem desde o princípio, era uma mostra da graciosidade e bondade de Deus a esta criatura do pó. Além disso,  contrário aos termos teocêntricos… a orientação de ambos os termos tradicionais é antropocêntrica, a preocupação deles tem que ver com os meios pelos quais o homem recebe as bênçãos da aliança.[29]

Embora a colocação de Meredith Kline seja interessante sobre os demais aspectos, é difícil aceitar a idéia de graça no pacto pré-redentivo. Posto que não havia pecado, o vice-gerente tinha plena comunhão com o seu criador e andava dentro dos Seus propósitos. Nesse contexto, portanto, parece mais adequado usar o termo “bondade” ao invés de “graça”. O conceito de graça, como entendido na Teologia, só tem lugar depois da queda.

Por tudo isso, e porque o conceito de Aliança da Criação é mais abrangente, claro e resulta de ampla e fiel exegese de Gênesis 1-11, feita por teólogos também de linha reformada, damos preferência ao termo “Aliança da Criação”.

 

CONCLUSÃO

Em Gênesis 5:22, 24 e 6:9 encontramos uma expressão que sintetiza bem a idéia desse relacionamento estabelecido na aliança da criação: A expressão “andar com Deus”. No primeiro  caso, como uma referência à vida de Enoque, dando a idéia de um relacionamento tão agradável com Deus que o Criador tomou Enoque para Si; no segundo caso, o termo é aplicado a Noé, e o seu registro é acompanhado por uma breve lista das características pessoais de sua vida: “Noé era homem justo e íntegro entre os seus contemporâneos; Noé andava com Deus”.  Com base nisso, e no estudo lingüístico da expressão, vemos que a idéia expressa por “andar com Deus”  é: “de acordo com a vontade de Deus”. Assim,  andar com Deus como uma pessoa da aliança significa: andar de acordo com a vontade de Deus, conforme  se encontra revelada na aliança. Como se pode ver, isso mostra a importância do estudo da doutrina da Aliança.

Por sua vez, compreenderemos melhor este vínculo de amor e vida no relacionamento de Deus com as obras de Suas mãos, a que chamamos Pacto da Criação, considerando-o em suas áreas distintas: a) o  mandato espiritual,  relacionamento do homem  com o Criador; b) o mandato social, relacionamento do homem com sua esposa e filhos; e c) o mandato cultural, relacionamento do homem com o cosmos.

 

             Nosso fiel relacionamento com Deus é demonstrado em nossa resposta de obediência à vontade do Criador; e isso produz,  no caso dos mandatos social e cultural, pela graça comum de Deus, bênçãos para os que obedecem; e, no caso do mandato espiritual, que só pode ser obedecido com o auxílio da graça especial, a salvação.   Por outro lado, a desobediência à vontade de Deus traz a maldição e a condenação em todas as áreas. Nesse sentido, a Bíblia é vista como um manual para o ser humano viver bem no seu relacionamento com o Criador, com sua família e com o cosmos.

As aplicações decorrentes do conceito de aliança podem ser vistas nos seguintes aspectos:

  1. a) Se a fiel obediência aos princípios da aliança produz o bem estar dos homens; assim como a desobediência produz a maldição, a verdadeira sabedoria consiste no temor de Deus.

 

  1. b) Como os relacionamentos estabelecidos na aliança abrangem todos os campos da vida do ser humano e todo o tempo de sua existência; a verdadeira religião passa a englobar todos os aspectos de sua vida, vinculando-os aos princípios da aliança.

 

  1. c) A consciência de que Deus nos criou e nos deu a posição de vice-gerentes na terra deve nos levar a, mais que qualquer outro grupo, cuidar das obras das mãos de Deus, cuidar da natureza e do meio ambiente.

Como se pode ver, a visão e o entendimento dos relacionamentos estabelecidos na aliança  abrangem todas as áreas de relacionamento da nossa vida e devem ser observados em todo o tempo. Assim, ser crente não significa apenas ir à Igreja aos domingos, significa andar com Deus em todo o tempo e em todos os Seus caminhos. Isso tem que ver com o relacionamento com a esposa, com a educação dos filhos, com o trabalho do dia-a-dia, com o estudo e desenvolvimento pessoal para ser útil no reino, com o cuidado com os animais, com o cuidado com o meio ambiente e com todas as obras das mãos de Deus. Além disso, e como ponto de maior importância, a obediência aos princípios da aliança significa ter um relacionamento fiel e amoroso com o Senhor que a estabeleceu.

 

[1]Cf. Harris, Archer and Waltke Theological Wordbook of the Old Testament  (Chicago – Moody Press,1980) p. l28.

[2]W. J.  Dumbrell, – Covenant & Creation, A Theology of the Old Testament Covenants  – (Grand Rapids, Michigan  – Baker Book House, 1993) p. 16

[3]Cf. W. J.  Dumbrell,  – Covenant & Creation, A Theology of the Old Testament Covenants  – (Grand Rapids, Michigan  – Baker Book House, 1993) p. 19

[4] Cf. J. H. Walton, – Covenant –  God´s Purpose, God´s Plan – (Grand Rapids, Michigan  Zondervan Publishing House, 1994 ) p. 14

5Este é um Hiphil que, como se sabe, introduz uma idéia causativa.  Esta forma é derivada de qûm, ´levantar`, ´erguer`.  No Hiphil seu significado passa a ser ´colocar de pé ` e então  ´erigir`, mas também é igualmente freqüente para ´estabelecer` (colocar algo de pé) e conseqüentemente ´ratificar`,  ´manter`. Em contextos teológicos no Antigo Testamento o sentido de ‘manter’,  ´ratificar` é freqüente.

[7] G. J. Wenham,.  Word Biblical CommentaryGenesis 1-15 (Waco, Texas – Word Books, Publisher – 1987) p. 175

10Eichrodt tinha quarenta e três anos quando a sua Teologia começou a aparecer em 1933.      Ele era  professor de História das Religiões e Antigo  Testamento em Basel onde estava desde 1922. Embora tenha escrito vários estudos detalhados, é a sua Teologia do Antigo Testamento  que caracterizou-se como a obra de sua vida. Para a Teologia de  Eichrodt  o conceito de Aliança é essencial. (Cf. D. G. Spriggs in   Two Old Testament Theologies (Naperville, Ill – Alec R. Alleson Inc. 1974) pp. 3, 11.

[9]W. Eichrodt , Theology of the Old Testament -(Philadelphia – The Westminster Press – 1961) p. 37

[10] O Pacto da Redenção é um desdobramento do Pacto da Criação em sua revelação progressiva. Ele foi determinado pela Trindade, anunciado em forma embrionária por ocasião da Queda, e progressivamente revelado, exercido e aplicado através do tempo.

[11]Evidentemente essa idéia  não leva em conta a nomenclatura “Pacto das Obras”.  Isso se dá em virtude do termo  “Aliança da Criação”  ser considerado mais abrangente e preciso na sua compreensão. Contudo, no andamento de nossas considerações, apresentaremos razões um pouco mais detalhadas quanto à preferência de “Aliança da Criação” a “Pacto das Obras”

[12] Cf. G.Van  Groningen, Messianic Revelation in the Old Testament (Grand Rapids, Michigan – Baker Book House, 1990) p. 60

[13]Cf. D. G.  Spriggs in   Two Old Testament Theologies (Naperville, Ill – Alec R. Alleson Inc. 1974) p. 16.

[14]Cf. M.G. Kline, – Westminster Theological Journal – Law Covenant (Philadelphia, Pennsylvania – Volume XXVII – November 1964 to May 1965) p. 9

[15]Cf. T.F. Henry, Covenant and Kingdom  A Right Relationship  (St. Louis, Missouri, 1989)  p. iii

[16] Cf. T.F.  Henry,  Covenant and Kingdom  A Right Relationship  (St. Louis, Missouri, 1989)  p. 7

 

[17]G. Van Groningen  – From Creation to Consummation  (St. Louis, Missouri 1990 – unpublished ) p.99

[18]G. Van Groningen  – From Creation to Consummation  (St. Louis, Missouri 1990 – unpublished ) p.22

[19] G.Van  Groningen, Messianic Revelation in the Old Testament (Grand Rapids, Michigan – Baker Book House, 1990) p.61

 

[20] G.Van  Groningen, Messianic Revelation in the Old Testament (Grand Rapids, Michigan – Baker Book House, 1990) p.61

 

[21]Cf. T.F. Henry, Covenant and Kingdom  A Right Relationship  (St. Louis, Missouri, 1989)  p. 6

 

[22]Cf. G.Van  Groningen, Messianic Revelation in the Old Testament (Grand Rapids, Michigan – Baker Book House, 1990) pp.59-60

 

[23]Cf. G. E. Mendenhall – Law and Covenant in Israel and the Ancient Near East (Pittsburg, Pennsylvania,  1955) pp. 32-34

 

[24]O termo “novo” é usado aqui conforme o seu significado bíblico em Jeremias, transmitindo uma idéia de um pacto “renovado”, mas não indicando a idéia  de “outro pacto”.

[25] Cf. M. G. Kline – Canon and Covenant – Part. II  (Philadelphia, Pennsylvania – Westminster Theological Journal – Vol. 32 (2) 1970) p.181

[26]Cf. W. J Dumbrell,. – Covenant & Creation, A Theology of the Old Testament Covenants  – (Grand Rapids, Michigan  – Baker Book House, 1993) pp. 44 – 46

[27]Cf. M.G. Kline, – Westminster Theological Journal – Law Covenant (Philadelphia, Pennsylvania – Volume XXVII – November 1964 to May 1965) p. 13

[28]Cf. M.G. Kline, – Westminster Theological Journal – Law Covenant (Philadelphia, Pennsylvania – Volume XXVII – November 1964 to May 1965) pp.13,14

[29]M.G Kline, – Westminster Theological Journal – Law Covenant (Philadelphia, Pennsylvania – Volume XXVII – November 1964 to May 1965) p. 18